A Nova Velha Peste

João Pinheiro da Silva
8 min readApr 1, 2021

1.

Ecoando Ortega y Gasset, “eu sou eu e minha circunstância”. Essa circunstância, ainda que não me determine por completo, molda-me. O “eu-circunstância” não faz do sujeito indistinto do mundo, mas, antes, indissociável deste. A pergunta pelo eu neste “novo mundo” encerra perfeitamente essas duas dimensões, o sujeito e sua circunstância. Esta não é, porém, de fácil classificação. A frase de Ortega y Gasset prossegue dizendo que “se não salvo a ela [a circunstância], não me salvo a mim”. Mas, para salvar a minha circunstância devo, em primeiro lugar, compreendê-la. Porém, uma das coisas que demarca o vírus com que lidamos é a nossa dificuldade em encaixá-lo nos nossos esquemas conceptuais e científicos, de dominá-lo e capturá-lo. Ao lidar com este caos invisível, estamos, na verdade, próximos de uma modalidade basilar da própria experiência humana, que a delineia desde a sua génese: a peste.

Proponho, assim, que, embora toda a circunstância contenha em si algo totalmente original, a novidade deste “novo mundo” é relativa, que a categoria fundamental para a entender é arcaica e que a sua origem se confunde com a própria génese da civilização humana. O vírus da covid-19 trouxe consigo, assim, não apenas uma doença extremamente infeciosa ou uma pandemia global. A peste, embora comporte uma dimensão material e organicista que podemos tentar encaixar nos nossos esquemas racionais científicos, confunde no seu seio os elementos sociais e do caos. Embora carregue consigo a doença física, a peste é também indistinguível da convulsão social. A Peste Negra, por exemplo, é indissociável das várias revoltas dos camponeses, das diversas caças às bruxas e dos motins que assolaram a Europa por décadas. A natureza da peste é anfíbia. É como se aquilo que o filosofo Willfred Sellars chama de “imagem científica” e “imagem manifesta” nela se misturassem.

2.

É a mais antiga das histórias. Adão e Eva, expulsos do Paraíso, descobrem-se nus, tomam consciência da sua vulnerabilidade. Na sua busca por proteção, cobrem-se com “roupas de peles” de animais mortos. Essa nudez primordial demarca, antes de algum tipo de inocência, uma plena completude. Adão e Eva não precisavam de nada do “exterior”, dado o seu contacto direto com a graça divina. Com a Queda, porém, tornam-se conscientes da sua finitude. A Queda torna-se uma cicatriz na própria pele do homem, um lembrete constante de que já não é mais completo, que agora precisa de algo que lhe é “exterior”, “estranho”, ou seja, de se debater com o caos.

É interessante que, na narrativa bíblica, o primeiro ato humano seja cobrir-se, mais especificamente, fazer roupa. Quando se apercebem da sua nudez, o primeiro homem e a primeira mulher criam “roupas de peles” para se cobrirem. Tal simbolismo vai muito além do que mentes puritanas podem julgar. O Gênesis mostra-nos, nessa simples passagem, o mais básico mecanismo da cultura (e da tecnologia) humana: virar a finitude contra si mesma, na esperança de adiar o fim último. O animal morto, que tornava o homem vulnerável, torna-se agora a fonte da sua proteção. O “exterior” e o “desconhecido” são virados contra si mesmos, de forma a nos proteger de “exteriores” e “desconhecidos” posteriores. Estes, devemos ter em mente, não são meras abstrações. São categorias do pensamento e da ação que utilizamos diariamente. O Gênesis bíblico já desvela, à partida, o próprio mecanismo da vacina por que tanto ansiamos: o vírus, que nos mata, pode ser usado, em devidas doses, para nos proteger. Podemos lidar com o caos e domá-lo, usar a morte para nos protegermos da morte. Assim, a história da civilização humana é a história de como as sociedades se revestem com diversas “roupas de peles”, é a história de uma constante simbiose com o caos que nos rodeia, tentando ordená-lo. E surge deste modo um dos mais interessantes aspetos da sociedade humana: a constante e paradoxal interceção entre a morte e o que nos protege da morte.

3.

A partir do momento em que se forma a cultura, em que há a reunião de um maior número de pessoas em espaços crescentemente mais reduzidos, em que animais selvagens são domesticados, assimilados na nossa dieta e mantidos perto dos homens, a peste torna-se inevitável. A civilização é acompanhada pelas mais diversas formas de organização humana, segundo as mais variadas hierarquias e diferenciações. Estas organizam o espaço humano, ordem-no de modo a que possamos viver. A peste é o desafio a todas essas formas de ordem. Enquanto rastro do caos, a peste é a marca da total indiferenciação. Como o antropólogo francês René Girard deixa claro, “a peste é universalmente apresentada como um processo de indiferenciação, uma destruição de especificidades”. Esta destruição de especificidades ganha forma naquilo que Girard chama de “crise de hierarquia”. Esta, porém, vai muito além da mera hierarquia social. A peste é um desafio a toda a forma de ordem, à ordem do conhecimento, à ordem social. Com a peste, “todo o conhecimento acumulado e todas as categorias de julgamento são invalidadas”. A peste é um desafio à própria civilização, é o dilúvio do caos. Todas as “roupas de pele” se tornam inaptas perante a peste. Tornando todas as nossas categorias de conhecimento inaptas, traz consigo a “suprema indiferenciação”, que não olha a estatuto social, económico ou intelectual, que não escolhe idade ou sexo: a morte.

É curioso que uma das primeiras coisas que Deus ordena a Adão seja nomear as diversas espécies animais do Paraíso. Para se tornar ciente do mundo à sua volta, o primeiro homem deve organizar as coisas, perceber o que lhes é específico e, assim, nomeá-las. Nomear é o ato cognitivo mais básico. Ao separar as coisas em diferentes categorias, percebendo a especificidade de cada uma, Adão organiza um espaço que era anteriormente amorfo. Assim, quando Girard classifica a peste como a própria impossibilidade da classificação, como uma “destruição de especificidades”, percebe totalmente o caos que esta encarna.

A palavra-chave para entender esse fenómeno é contágio. O contágio, quando entendido dentro do fenómeno da peste, também perde o seu significado meramente médico ou científico. O contágio é, seguindo Girard, o traço fundamental da cultura. É o contágio mimético constante, presente em cada interação social, que cria a linguagem, as normas sociais, a arte… Este traz consigo tanto o melhor quanto o pior do Outro. Este Outro não é necessariamente a outra pessoa. É, antes, a encarnação do desconhecido, daquilo que nos pode matar. A história da cultura humana é, como vimos, a assimilação do Outro, desse caos. A natureza do Outro não é, porém, unívoca.

Voltemos ao contágio. Embora tenha uma conotação comummente negativa (principalmente em tempos de peste), o contágio é totalmente neutro. Não conseguimos, por exemplo, pensar a arte sem o contágio positivo. Homero contagiou Virgílio, Virgílio contagiou Dante, Dante contagiou Eliot, e por aí em diante. Não é, porém, difícil percebermos instâncias de contágio negativo. Toda a forma de linchamento público, por exemplo, é uma forma de violência contagiosa, que domina uma multidão enfurecida.

O mais fundamental a perceber no contágio é que ele é sempre anti-cartesiano. Ou seja, envolve sempre o Outro. Este, por sua vez, pode ter a melhor ou a pior das facetas. Nada exemplifica isto melhor do que um dos espaços humanos mais arquetípicos do contágio entre culturas: a Rota da Seda. Assim como a Rota da Seda funcionou, por séculos, como a ligação entre culturas estrangeiras, desconhecidas umas das outras, algo que uniu o mundo através do tráfico das mais diversas formas de arte, gastronomia e tecnologia, foi também a Rota da Seda que possibilitou o contágio das epidemias medievais. Vinda do rato que vive na margem da cidade ou vinda dos povos que vivem na margem do Oriente, a peste é sempre vista como a marca nociva do Outro, o lado negativo do contágio. Assim como a narrativa do Gênesis nos ensina, a cultura humana vive dessa constante simbiose com o Caos. O importante é perceber que o caos que cura pode ser também o caos que destrói.

4.

Não deixa de ser, assim, muito interessante o quão uniforme a peste é. Embora muito se especulo sobre o “novo mundo” do corona vírus, vale notar que a nossa experiência atual tem muito pouco de novo. Na verdade, ao anular todas as categorias do conhecimento que possuímos, a peste fez com que o mundo tecnocrático moderno ficasse par a par da Europa Medieval de alguém como Bocácio. No seu Decâmeron, Bocácio narra cem contos na voz de um grupo de sete moças e três rapazes que se abrigam num castelo próximo de Florença para fugir da Peste Negra, que afligia a cidade.

É curioso perceber que, seiscentos anos depois de Bocácio, a medida profilática mais eficaz que dispomos para lidar com a peste não deixa de ser a mesma: o isolamento social. É a estranha e uniforme democracia do caos, servida a todos, nas mais diversas épocas, da mesma forma. Seja na Florença de Bocácio, seja no Porto de 2020, a peste é a marca dos limites da cultura humana que, para ser solucionada, envolve uma desaceleração da mesma.

E aqui entramos em algo efetivamente novo no nosso mundo. A globalização (que tem as suas raízes na Rota da Seda) traz consigo uma constante aceleração tanto do espaço como do tempo. Nunca foi tão rápido viajar de uma ponta à outra do mundo e nunca, ao mesmo tempo, sentimos ter tão pouco tempo. O mundo tecnológico inaugura a era da simultaneidade que, quando entendida à luz do contágio, estabelece uma situação completamente nova. A própria peste do corona vírus espalhou-se a um ritmo frenético. A atual pandemia apresentou-nos um problema antigo de uma forma nova, exacerbada. Só uma categoria como a “peste”, por representar o caos, pode compreender a situação atual em que nem sequer sabemos o que é pior: a pandemia ou a resposta que vamos dar à mesma.

5.

Estabelecendo assim o que há de “novo” neste mundo, podemos voltar à questão inicial e perceber como podemos “salvar a nossa circunstância”. No mundo da aceleração constante e do progresso técnico, a peste surge como um travão, um desafio à civilização e ao conhecimento que julgamos estabelecido. Salvar-nos do contágio, nesta circunstância, é salvar-nos do pior que este traz consigo, mais precisamente, do contágio da violência.

Na tragédia do Édipo Rei, a cidade de Tebas é assolada por uma peste e é a expulsão e purga de Édipo que ameniza o caos que a domina. Os tebanos se uniram num uníssono de violência contra Édipo, vítima inocente desse contágio da violência. Ainda que não tivesse solucionado o vírus em questão, tal linchamento apazigou a cidade, fez com que a peste fosse amenizada, que a convulsão social fosse resolvida. Édipo, o Estrangeiro, a encarnação do Outro, tornou-se o bode expiatório da violência coletiva de Tebas.

No mundo da aceleração constante, fugir do contágio é evitar formar bodes expiatórios, colocar no Outro a responsabilidade pela peste, pelo mal que nos ataca. Salvar a nossa circunstância é, assim, não permitir que o contágio da violência nos domine, tentando, não expiar, mas incluir o Outro de forma positiva.

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