A Universalidade do Desespero em Kierkegaard

João Pinheiro da Silva
9 min readOct 29, 2019

1.

Søren Aabye Kierkegaard (1813–1855) é um dos seres mais ecléticos seres que a história do pensamento viu surgir. Esteta, poeta, psicólogo, filósofo ou teólogo, Kierkegaard é, acima de tudo, um pensador — de acordo com Wittgenstein, o “mais profundo” do século XIX. Está ao lado de Dostoievsky na disputa pelo título de primeiro existencialista — título este que, com as devidas deficiências, nos oferece uma boa paisagem do pensamento do dinamarquês — pois percebe que, de um ponto de vista exterior, somos, parafraseando o seu bem quisto Eclesiastes, um “punhado de pó”. Contudo, o ser humano é mais do que pura exterioridade, é um ser de consciência e de reflexão. E é esse o objeto de estudo de Kierkegaard: o ser humano na sua singularidade irredutível, aberto à transcendência.

O pensamento de Kierkegaard é, portanto, intenso e pessoal, avesso à abstração supra individual que havia dominada a filosofia que o precedeu - que atingia o seu apogeu com Hegel. A filosofia Kierkegaardiana é declaradamente antissistemática, mas nem por isso menos profunda ou complexa, pelo contrário. É, acima de tudo, uma filosofia que busca intensificar a subjetividade, a experiência pessoal, pois é aí que, no seu entender, radica a verdade.

O texto que interpretarei faz parte de Desespero — A Doença Mortal, escrito em 1849 sob o pseudônimo Anti-Climacus, um devoto que escreve de uma perspetiva cristã tão ideal que Kierkegaard não a quis atribuir a si mesmo. Por este motivo, daqui em diante, referir-me-ei ao autor como Anti-Climacus. Antes de partir para a interpretação, vale a pena esclarecer o conceito de desespero, apresentado no capítulo anterior ao analisado.

O livro começa com uma citação de João 11,4: “Essa doença não acabará em morte”, palavras que Jesus pronunciou sobre Lázaro, que seria mais tarde ressuscitado pelo Messias. A questão suscitada por Anti-Climacus é se a citação se manteria mesmo se Jesus nunca ressuscitasse Lázaro. Para o cristão, a morte, encarada comumente como o pior dos males, não é o fim, já que foi vencida por Cristo ao ressuscitar Lázaro, o filho da viúva de Naim ou a filha de Jairo — e, em último plano, na própria Cruz. Antes, a morte transporta muito mais esperança que a vida. Assim sendo, a “doença que acabará em morte” descreve a morte espiritual, não a carnal: descreve o desespero.

O desespero funciona, em Kierkegaard, da mesma forma que o conceito de pecado funciona na tradição Cristã, dada a sua universalidade (que será explorada na interpretação do texto). O ser humano, o “eu”, é uma “síntese” de vários elementos: finitude e “infinitude”, temporalidade e eternidade, possiblidade e necessidade. Sempre que esta relação de síntese estiver em desiquilíbrio, sempre que houver um desajuste na relação entre os termos opostos, eclode o desespero. Com isto, o desespero é, para nós, uma condição existencial quase inata, que não se deve a nada externo. Desesperar é desesperar por si mesmo, pelo seu próprio ser.

2.

A Universalidade do Desespero, o capítulo a analisar, trata, em suma, a “dialética do desespero”, sendo que o texto trabalha, de modo geral, a tensão entre esta e a “dialética da doença”. A tensão pode ser já observada no começo do texto: “Assim como talvez não haja, dizem os médicos, ninguém completamente são, também se poderia dizer, conhecendo bem o homem, que nem um só existe que esteja isento de desespero…”. Em seguida, avança que “jamais alguém viveu e vive, fora da cristandade, sem desespero, nem ninguém na cristandade se não for um verdadeiro cristão”. O desespero é uma condição fundamental pois, seguindo Santo Agostinho, “inquieto está nosso coração, enquanto não repousa em Ti” (ou, na belíssima formulação anglófona: “our heart is restless until it rests in thee”).

Anti-Climacus passa então a tecer uma crítica à “concepção corrente”, do “vulgo”, de desespero, afirmando que se limita à superficialidade. Segundo o “vulgo”, “cada um de nós será o primeiro a saber se é ou não desesperado”, e basta não crer que não o ser, para “passar por não o ser”. O que Anti-Climacus quer dizer é que a “dialética do desespero” passa despercebida ao vulgo. Da mesma forma que não se encontram em condições de afirmar a saúde ou doença de alguém, ainda que o doente não se confesse doente, não se encontram em condições de definir o desespero, sendo o erro maior, uma vez que desconhecem mais o espírito que o corpo. Os médicos, por sua vez, “não ignoram que, assim como há doenças imaginárias, há saúdes imaginárias”.

O comportamento do psicólogo face ao desespero deve ser semelhante ao do médico face à doença. Há que conhecer o mal e não se contentar com a mera opinião, seja do doente ou do desesperado. Quem trata o desespero deve ter, porém, consciência de que “é fácil imitar o desespero” e “abatimentos sem consequências”, contudo, essa mesma afetação, até essa “imitação é desespero”.

A “dialética do desespero” (e é este o principal mal-entendido do vulgo), como “enfermidade espiritual”, é diferente da enfermidade corpórea. Anti-Climacus passa então a explanar as mais importantes definições do excerto, que justificarão a sua tese acerca da universalidade do desespero. De modo a evitar contratempos conceptuais, cingir-me-ei a falar de dialética enquanto “dialética da doença” ou “dialética do desespero”. Vale notar que se falarmos em doença do espírito, falamos de desespero, pelo que o termo “dialética da doença” aborda a mecânica da doença psicossomática.

O que Anti-Climacus procura demonstrar é que só há dialética da doença, não há uma dialética da saúde. A doença determina-se sempre em relação ao estado de saúde. Dialética significa então, num sentido mais básico, que, dado um X, o significado de X é determinado, não no X em si e por si, mas pela relação de X a um Y, sendo que X e Y são opostos (saúde-doença, neste caso). A doença define-se enquanto doença por oposição à saúde, e é isto que permite uma dialética da doença. Já a saúde define-se por si mesmo, “porque com a saúde física permanecemos no imediato, não há dialética senão com a doença…”. A dialética do desespero é, porém, mais intricada.

A dialética do desespero implica uma nova noção, a noção de espírito e “ao considerá-lo como espírito, jamais o homem deixa de estar num estado crítico”. No caso da doença, onde a saúde é um estado, por assim dizer, originário, só a doença é dialética. No caso do desespero, mesmo quando não estou desesperado, posso estar em desespero. “Se uma pessoa, cuja saúde ele [o médico] constatou num determinado momento, cai depois doente, o médico tem o direito de dizer que estava são e que está agora doente. O mesmo não sucede com o desespero. O seu aparecimento mostra já a sua preexistência. ” Não existe um estado de “saúde imediata do espírito” que me permita determinar, posteriormente, a doença do espírito. “Nada portanto de idêntica à doença, na qual o mal- estar é a própria doença…Aqui o próprio mal-estar é dialético. Nunca o ter sentido, eis precisamente o desespero”. A única analogia possível com a doença corpórea ocorre pelo facto de que podemos estar doentes julgando-nos saudáveis, nada mais. Quanto, à doença, o estado normal é o estado de saúde. Quanto ao desespero, a sua condição universal é o desespero. Por isso se pode afirmar que “o vulgo comete um grande erro considerando o desespero uma exceção, quando ele é, pelo contrário, a regra”. O sujeito não se sentir desesperado, tanto pode significar que não está no desespero, como significar que está no desespero (sem ter notícia disso). O significado de não estar desesperado é, portanto, dialético, pois pode acontecer que não me sinta desesperado e esteja no desespero. Não estar desesperado pode ser uma coisa ou pode ser outra, e assim como acontece no caso do médico, não é a decisão do paciente que dita a sua saúde ou doença. O desespero origina-se, quer o sujeito esteja consciente disso ou não, do desiquilíbrio entre os opostos que formam o “eu”, a síntese formadora do ser definida no princípio do livro. Afirma Anti-Climacus: “… bem poucos serão aqueles que verdadeiramente não sejam desesperados”.

Anti-Climacus passa então a argumentar pela ideia de que felicidade que advém da inocência e da inconsciência “não bastar para atravessar a vida”. “Se até ao fim nada, além desta felicidade, se possui para a viagem, nada se ganha com isso, pois só se possui desespero”, afirma. “O desespero é precisamente a inconsciência dos homens em relação ao seu destino espiritual” e mesmo aquilo que “é felicidade, sem dúvida” como o mais belo e adorável ou a feminilidade na flor da idade são, todavia, desespero, pois “de modo algum” constituem uma “categoria do espírito”. Não fica claro no texto o que Anti- Climacus quer dizer com categoria do espírito, porém, a forma mais fácil de a entender seria do seguinte modo: assim como a saúde, a felicidade é uma determinação imediata. Ao corresponder ao imediato, a um “sinto-me feliz”, não requer a relação de si a si, do sujeito consigo mesmo. Um sujeito pode esforçar-se para ser feliz e nunca o conseguir ou não se esforçar nada e sê-lo. Dada esta natureza imediata da felicidade, “não há lugar mais da predileção do desespero do que o mais íntimo e profundo da felicidade”.

Ecoando aquilo que toda a tradição cristã diz sobre o pecado, Anti-Climacus enuncia que “o homem que sem imitação afirma o seu desespero não está tão longe da cura, está mesmo mais próximo do que todos aqueles que não são considerados e não se julgam desesperados”. Porém, nota que a maioria vive sem consciência do seu destino espiritual, “daí toda essa falsa despreocupação, essa falsa satisfação de viver”. E, terminando o excerto com belas palavras, o autor descreve as “existências perdidas”, aquelas se iludem ao ponto de jamais atingir a consciência de ser um espírito ou “sentir profundamente a existência dum Deus”. “Tantas existências frustradas dum pensamento que é a beatitude das beatitudes”, escreve com notável melancolia. Esta frustração com o cristianismo, tristemente denunciada por Anti-Climacus, dissimulada na alzafama da vida que passa a tratar a pessoa como parte de um “rebanho”, faz com que o individuo tenha medo de se isolar para que “sozinho consagre a atingir o fim supremo; o único que vale a pena viver e que tem como alimentar uma vida eterna”. E com palavras peculiarmente sentidas, conclui: “Perante essa miséria eu bem poderia chorar uma eternidade inteira!”.

O texto termina com uma longa e bela enumeração. Enumeração esta que pretende albergar toda a humanidade, desde aquele cuja “cabeça tenha suportado o brilho da coroa” aquele que “sem nome”, anonimamente seguiu a multidão inumerável. A cada um destes, a cada individuo, “a eternidade de uma só coisa inquirirá: se a tua vida foi ou não desespero… E, se a tua vida foi senão desespero, que pode então importar o resto! Vitórias ou derrotas, para ti tudo está perdido, a eternidade não te considera como seu, ela não te conheceu, ou, pior ainda, identificando-te, amarra-te ao teu eu, o teu eu de desespero!”.

3.

Tecendo primeiro uma crítica ao excerto, é possível notar que, principalmente com a noção de desespero inconsciente, é construída uma filosofia logicamente irrefutável: se alguém afirma que não se encontra no desespero, é possível responder que esse sujeito está no desespero, apenas não sabe disso. Creio, contudo, que esta crítica não faz sentido. Dizer que uma forma de desespero é inconsciente não é alegar que ela é um puro “nada”, algo de inconcebível que não é coisa nenhuma para ninguém. Não, o desespero é inconsciente na medida em que mantém uma relação com a consciência e define-se precisamente pela relação que tem com ela: para o desesperado inconsciente, o desespero não existe enquanto tal. No entanto, existe nele estabelecida uma relação com consciência que não é consciente.

Fica clara, principalmente depois de conhecer o pseudónimo sob o qual é escrito, a dimensão quase que apologética do excerto. Pode-nos parecer bizarro que um pensador do século XIX, que sucede o Iluminismo, faça um tão rasgado elogio do Cristianismo, afirmando que “jamais viveu e vive alguém, fora da cristandade, sem desespero”. Este preconceito apenas nos impede de desvendar o que está atrás da cortina. Longe de fazer uma apologética ou proselitismo clássico, Kierkegaard afirma a dignidade e a dificuldade da fé. O cristianismo surge como uma experiência, vertiginosa e abissal, num mundo dominado pelo desespero. A sua filosofia é uma educação pela angústia, e esse ponto agrada-me em particular.

Atrai-me especialmente a tentativa de recuperar a noção de pecado universal através do desespero. Não que eu acredite na teoria do pecado original ou do desespero como sendo uma “estrutura histórica” ou algo do género, mas porque as vejo como uma espécie de mitologia que explicam bem e profundamente o comportamento humano. E a palavra mitologia não desempenha aqui nenhum papel pejorativo, pelo contrário. Todos nós precisamos de mitologias, de mapas de significados, e cabe a nós escolher quais preferimos. Como Kierkegaard notou, a maioria prefere autoajuda de livraria de aeroporto. Longe do niilismo que Nietzsche denunciava no cristianismo, a filosofia Kierkegaardiana parece-me ser corajosa, demandando uma vida ativa e, acima de tudo, humilde. E é aqui os argumentos de Kierkegaard me interessam especialmente, no plano antropológico e ético. A alma cristã, no sentido Kierkegaardiano, é, antes de tudo, a alma de alguém humilde, que tem consciência do desespero, do pecado. É a alma de um ser que se sabe limitado e é, por isso, imune aos delírios modernos de plenitude e felicidade ininterrupta. É uma alma que reconhece que se perde nela mesma por conta de um desejo que nunca consegue controlar, e que, por isso, cultiva uma virtude silenciosa e genuína.

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