O Mau Humor e O Humor Mau

João Pinheiro da Silva
3 min readNov 25, 2021

Este texto foi publicado no dia 24/11/2021 em vários jornais graças a uma oportunidade do Instituto +Liberdade. É, no fundo, uma versão ultra condensada do artigo que escrevi para a revista Ethic@. Está nos planos redigir uma versão apenas condessada do mesmo para outras publicações. É so esperar que o tedioso debate dos limites do humor volte à tona. Até lá…

O debate sobre os limites do humor tornou-se uma espécie fetiche sazonal da discussão pública portuguesa. Não que seja realmente um debate — por norma, é apenas a purga de um comediante mascarada sob o véu ético do “respeito” e da “boa educação” -, mas é geralmente percebido como tal.

O curioso é que, nesta infinidade de discussões, jamais vi alguém mencionar o problema do mau humor. Não me refiro à piada do humorista ser má (isso seria apenas “humor mau”), mas ao bom e velho mau humor mesmo — aquele que normalmente nos aflige pela manhã e é resolvido com um bom pequeno-almoço. Este, porém, quando se trata das discussões sobre os limites do humor, ganha uma forma específica. Passo a explicar.

O segredo do humor é a incongruência. Por norma, uma piada funciona pois cria em nós uma expetativa e logo a destrói da maneira mais impiedosa.

“Deixar de fumar é fácil, já o fiz muitas vezes”, dizia Mark Twain. Rimos pois percebemos uma ambiguidade: esperamos uma coisa e recebemos o seu contrário — cria-se uma incongruência.

Ou seja, a essência de uma piada é eminentemente formal. O seu conteúdo, a perfomance do comediante, o ambiente em que é contada, etc., são fatores secundários. A piada funciona porque retrata comicamente uma ambiguidade. Para além disso, quando é bem sucedida, a incongruência deve concretizar-se em risos. No final das contas, o público é o juiz do humorista.

O problema do mau humor começa quando o juiz não respeita a sua magistratura. O bom juiz conhece as leis sobre as quais opera, mas é muito raro o julgamento sobre os limites do humor que perceba o fenónemeno sob o qual pretende legislar.

Confundir uma piada construída ao redor de uma ideia (a sua forma) com a ideia em si (o seu conteúdo) seria como culpar Robert de Niro pelas suas ações enquanto Vito Corleone. Mas é exatamente isso que grande parte das discussões sobre o humor tem feito.

Porém, se pensarmos que o apelo do humor negro, por exemplo, está não na insensibilidade ou desumanidade do humorista, mas na extrema incongruência que este envolve, pouparemos muitos casos de moralismo desnecessário.

Afinal, todos lembramos o caso de um certo grupo de extremistas que interpretou um certo cartoon como um apelo à morte de um certo profeta. Ironicamente, o ponto do cartoon era expressar a incongruência de certos extremistas que são dogmáticos ao ponto de matar até um certo profeta.

O mau humor é muito mais perigoso do que qualquer piada. E pode chegar a um ponto em que nem um bom pequeno-almoço o resolve.

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